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sexta-feira, 21 de maio de 2010

En su punto

Duanne, não sei se concordo com a idéia de que para Gracián nem todo ser humano é uma pessoa — ou melhor, não acho que esta é a ideia apresentada neste primeiro aforismo. Mas comecemos pelo começo.

Todo está ya en su punto. É duvidoso que Gracián considerasse os avanços de sua época a plenitude de tudo o que fosse alcançável pela raça humana; pois se cada indivíduo, não importa o quão maravilhoso ele já seja, pode ainda se aperfeiçoar mais um pouco, a soma de bilhões de indivíduos também tem muito o que fazer antes de chegarem à perfeição. O que a frase pode querer dizer, porém, é que há um padrão de perfeição em cada época e cada contexto; tudo já está em seu ponto (em seu auge, seu acme, seu pico) porque as coisas só vão melhorando — uma visão peculiarmente otimista da história humana. Você acertou quando falou que a idéia é alcançar completude dentro do contexto ao qual você pertence.

Este sendo o caso, acho difícil dizer que Gracián quer distinguir entre homens que são plenamente pessoas e homens que são incompletamente pessoas, como, por exemplo, Aristóteles o faz quando, ao definir o homem como um animal político, classifica aquele que não pertence à pólis como "um homem mau ou acima da humanidade". Se este fosse o caso, e pudéssemos traçar uma linha de pré-requisitos culturais, científicos, culturais, et cetera para que o homem seja considerado "pessoa", seria possível considerar até o mais sábio dos gregos da antiguidade como menos "pessoa" do que, digamos, o mais medíocre dos leitores atuais, cuja única vantagem sobre os velhos filósofos é o lazer que ele tem para estudar e refinar-se. Falando apenas por mim, não me considero uma pessoa mais completa ou perfeita do que, digamos, Sólon ou Esdras. Por mais que eles tivessem, segundo nosso autor, apenas um sétimo do conhecimento necessário para ser considerado sábio no tempo de Gracián. Só Deus sabe qual seria o ratio entre os sábios da antiguidade e nós hoje.

Se el punto é, então, a completude relativa ao seu tempo, e não uma medida objetiva de perfeição, a frase inicial pode melhor ser compreendida como "Tudo está no ápice de sua perfeição, especialmente o ser pessoa." O texto espanhol diz, em relação ao punto, que el ser persona en el mayor, e não es el mayor. Gracián não está dizendo que "tornar-se pessoa constitui a maior perfeição de todas", e sim que nunca houve momento tão perfeito para ser pessoa quanto este. O que torna sua afirmação seguinte mais compreensível: há todo um universo de ciências e artes possuídas (ou possessíveis) por nós que os antigos nem imaginavam possível. Este é o mais propício e frutífero dos momentos para alcançar a completude como pessoa.

Eu tinha algumas observações protestantes para fazer a respeito da idéia do esforço, mas vou guardá-las para algum momento mais oportuno. Um abraço a todos.

terça-feira, 18 de maio de 2010

#1 - "tudo alcança a perfeição..."

Tudo alcança a perfeição, e tornar-se uma verdadeira pessoa constitui a maior perfeição de todas.
(nota: "para Grácian, nem todo mundo é uma "pessoa" (persona) de fato. Alguém se torna uma "pessoa", e não apenas um homem ou uma mulher, por meio do esforço pela perfeição moral.)
Fazer um sábio no presente exige mais do que se exigiu para fazer sete no passado. E atualmente é preciso mais habilidade para se lidar com um só homem do que antigamente com todo um povo.
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Estou usando, neste post, a edição de bolso da Martin Claret.

À primeira vista, "tudo alcança a perfeição" parece indicar um movimento ou uma possibilidade natural de tudo chegar à perfeição; compreende-se que, para o ser humano, a sua perfeição será se tornar uma pessoa. A nota abaixo me instrui a pensar que esse tornar-se pessoa é aperfeiçoar-me moralmente. O comentário abaixo me parece apenas indicar as dificuldades de um tal projeto.

Seria assim simples se a tradução não estivesse errada. No original, Gracián diz:
Todo está ya en su punto, y el ser persona en el mayor. Más se requiere hoi para un sabio que antiguamente para siete; y más es menester para tratar con un solo hombre en estos tiempos que con todo un pueblo en los passados.
Há uma discussão sobre a tradução dessa primeira frase aqui. Resumindo, destaca que o autor diz, de fato, que tudo "já está em sua perfeição". Não há nenhuma alusão a "alcançar". Tudo está. E ser uma pessoa está acima dessa perfeição atual. Só posso pensar que há níveis de perfeição, e, como o aforismo #6 vai mostrar, é pelo esforço que vamos atravessando nível a nível. Pelo esforço.

Se você dá o valor adequado à ideia de esforço, você entende como um teólogo cristão do século 17 pode ter se tornado uma influência de Nietzsche, como me diz a Wikipedia.

Quanto ao termo "perfeição", provavelmente Gracián não o entende como nós o entendemos. A tradição grega comprende "perfeito" como "completo", nunca significa dizer que aquilo atingiu um ponto em que não há mais o que lhe acrescentar. Então, "tudo já esta em sua completude" seria uma tradução acertada. Assim fica coerente com o próprio propósito do livro. Sou completo em determinado contexto, porque tenho os atributos e habilidades que esse contexto exige; mas, em outro, sou incompleto, ineficiente. Ser uma pessoa é ser completamente completo. Difícil crer que ele se referia a decorar manuais de moral cristã, como essa nota que citei me leva a entender.

Sobre o comentário do aforismo, a tendência é que interpretemos isso tudo no nosso tempo. Sim! É mesmo. É muito mais difícil ver um sábio hoje. Sim! É mesmo. Hoje lidar com um só homem é dificílimo. Bem, esse homem que escreveu o livro escreveu o livro no século 17. Ele tem outros sábios em vista, ele tem outras dificuldades em vista. Se você leva em consideração o que está dito acima, percebe que A Arte da Prudência é (por dizer) completo em seu contexto, compilou os atributos necessários para lidar com ele; mas nada nele quer dizer que são suficientes para o nosso contexto. É preciso entender como ele se dá como livro individual e de seu tempo, sem deturpá-lo em um manual para a nossa época. Garantindo sua unicidade, fazemos as comparações e tudo mais.

Pretendo falar mais desse aforismo depois, sobre o "formar um sábio" e sobre o "lidar com um homem". Mas antes quero saber o que vocês pensam sobre o que falei nesse post. Acho que dá pra discutir e ampliar essas coisas antes de passar para o próximo. O livro original pode ser baixado aqui, e aqui está o link wikipédico inglês, com mais informação.