Pages

terça-feira, 18 de maio de 2010

#1 - "tudo alcança a perfeição..."

Tudo alcança a perfeição, e tornar-se uma verdadeira pessoa constitui a maior perfeição de todas.
(nota: "para Grácian, nem todo mundo é uma "pessoa" (persona) de fato. Alguém se torna uma "pessoa", e não apenas um homem ou uma mulher, por meio do esforço pela perfeição moral.)
Fazer um sábio no presente exige mais do que se exigiu para fazer sete no passado. E atualmente é preciso mais habilidade para se lidar com um só homem do que antigamente com todo um povo.
---

Estou usando, neste post, a edição de bolso da Martin Claret.

À primeira vista, "tudo alcança a perfeição" parece indicar um movimento ou uma possibilidade natural de tudo chegar à perfeição; compreende-se que, para o ser humano, a sua perfeição será se tornar uma pessoa. A nota abaixo me instrui a pensar que esse tornar-se pessoa é aperfeiçoar-me moralmente. O comentário abaixo me parece apenas indicar as dificuldades de um tal projeto.

Seria assim simples se a tradução não estivesse errada. No original, Gracián diz:
Todo está ya en su punto, y el ser persona en el mayor. Más se requiere hoi para un sabio que antiguamente para siete; y más es menester para tratar con un solo hombre en estos tiempos que con todo un pueblo en los passados.
Há uma discussão sobre a tradução dessa primeira frase aqui. Resumindo, destaca que o autor diz, de fato, que tudo "já está em sua perfeição". Não há nenhuma alusão a "alcançar". Tudo está. E ser uma pessoa está acima dessa perfeição atual. Só posso pensar que há níveis de perfeição, e, como o aforismo #6 vai mostrar, é pelo esforço que vamos atravessando nível a nível. Pelo esforço.

Se você dá o valor adequado à ideia de esforço, você entende como um teólogo cristão do século 17 pode ter se tornado uma influência de Nietzsche, como me diz a Wikipedia.

Quanto ao termo "perfeição", provavelmente Gracián não o entende como nós o entendemos. A tradição grega comprende "perfeito" como "completo", nunca significa dizer que aquilo atingiu um ponto em que não há mais o que lhe acrescentar. Então, "tudo já esta em sua completude" seria uma tradução acertada. Assim fica coerente com o próprio propósito do livro. Sou completo em determinado contexto, porque tenho os atributos e habilidades que esse contexto exige; mas, em outro, sou incompleto, ineficiente. Ser uma pessoa é ser completamente completo. Difícil crer que ele se referia a decorar manuais de moral cristã, como essa nota que citei me leva a entender.

Sobre o comentário do aforismo, a tendência é que interpretemos isso tudo no nosso tempo. Sim! É mesmo. É muito mais difícil ver um sábio hoje. Sim! É mesmo. Hoje lidar com um só homem é dificílimo. Bem, esse homem que escreveu o livro escreveu o livro no século 17. Ele tem outros sábios em vista, ele tem outras dificuldades em vista. Se você leva em consideração o que está dito acima, percebe que A Arte da Prudência é (por dizer) completo em seu contexto, compilou os atributos necessários para lidar com ele; mas nada nele quer dizer que são suficientes para o nosso contexto. É preciso entender como ele se dá como livro individual e de seu tempo, sem deturpá-lo em um manual para a nossa época. Garantindo sua unicidade, fazemos as comparações e tudo mais.

Pretendo falar mais desse aforismo depois, sobre o "formar um sábio" e sobre o "lidar com um homem". Mas antes quero saber o que vocês pensam sobre o que falei nesse post. Acho que dá pra discutir e ampliar essas coisas antes de passar para o próximo. O livro original pode ser baixado aqui, e aqui está o link wikipédico inglês, com mais informação.

3 comentários:

  1. Bom, no meu livro não tem esse alforismo então é uma novidade para mim, mas não foge muito do que Grácian diz o tempo todo. Fica bem claro que esse alforismo resume bem como ele influênciou Nietzsche (que simplesmente tirou o teor cristão e tranformou esse "tornar-se uma pessoa" em "tornar-se mais que um homem", só que lutando contra o próprio cristianismo).

    Ou seja, se Balthasar queria que nós tornassemos o cristão perfeito, Nietzsche queria que ultrapassassemos essa condição lutando contra a própria idéia do "cristão perfeito".

    Além disso Grácian é um conservador nato e nesse alforismo isso aparece apenas subjetivamente "E atualmente é preciso mais habilidade para se lidar com um só homem do que antigamente com todo um povo." Isso se refere a idéia de massa, o povo era fácil de lidar, eles só obedeciam, já no século 17 o homem estava na massa, mas também estava fora dela em sub-grupos, ou até por si mesmo, impondo sua indivualidade (o que de certa forma era raro).

    Grácian queria que essa perfeição (a perfeição ao modo dele) fosse alcançada por todos, para que esses novamente estivessem nos moldes da moral cristã, assim sendo voltariam a ser a massa e portanto mais fáceis de se lidar.

    ResponderExcluir
  2. Em nenhuma parte está escrito que devemos nos tornar cristãos perfeitos. Em nenhuma parte se faz referência ao controle da massa, mas exatamente se fala do aperfeiçoamento pessoal do indivíduo. E que o povo antes do século 17 tenha sido "obediente e fácil de lidar" é uma afirmação tão leviana e ingênua que eu nem vou me dar ao trabalho de retrucar.

    ResponderExcluir
  3. Eu ia dizer o que o Duanne disse, mas cheguei tarde.

    Tendo dito isso: o Trunkael capta algo de maquiavélico e manipulador que existe, sim, nas entrelinhas. Só não nestas primeiras palavras de Gracián.

    ResponderExcluir