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sábado, 9 de outubro de 2010

Teatralização

Duanne,

acho que você tocou num ponto fundamental do livro: o constante cuidado para a manutenção de aparências aponta para uma espécie de teatralização da vida. A vida prudente seria uma vida planejada, na qual as surpresas da experiência subjetiva são, ao máximo possível, substituídas por uma visão objetiva de suas próprias ações, uma tentativa de medir suas ações pelas reações e resultados que elas gerarão em outros. E quando tentamos imaginar a reação de outros aos passos que tomamos, isto gera uma tensão inevitável, uma autoconsciência e autocrítica que nos torna (pelo menos um pouco) neuróticos; pois nos lembramos que além de sermos sujeitos, somos também objetos. Pois sabemos imediatamente que somos julgados com a mesma fria impaciência que reservamos a outros. A objetivação sempre traz consigo o medo da nossa própria objetificação.

Acho que esse é um ponto que pode ser explorado mais para a frente. Vamos adiante ao próximo aforismo?

sábado, 31 de julho de 2010

A Vida como Ficção

Pensei um bocaco sobre esse aforismo e tentei sistematizar algum pensamento, mas não consegui. Creio que o ideal mesmo será trabalhar livremente com as associações que me surgem quando me foco no tema. Vou seguir um caminho bem distinto do que o John seguiu, exatamente porque eu não sei bem o que dizer sobre o que ele disse. Muito bem.

A primeira coisa que me o aforismo me faz pensar é que por trás dele parece estar na ideia de que a vida é teatro, ou pelo menos se assemelha em muitos sentido à obra de arte; nosso sucesso depende da parcimônia com que provemos ou negamos informação a respeito do que somos, do que fazemos ou do que pretendemos fazer. Quando no texto anterior é dito "os motivos pelos quais Gracián recomenda a discreção: o medo de ser criticado caso seus planos não dêem certo, a prudência de manter em segredo suas intenções, o simples bom gosto de jogar sem mostras suas cartas" — bem, neste trecho uma série enorme de situações está contida. O medo de ser criticado supõe uma defesa pessoal que tanto pode partir da insegurança, quando do cálculo — como parece ser o caso. Se sei que serei criticado, sei que o que quer que eu tenha feito não atingiu determinado nível de excelência: eu reconheço a existência desse código de perfeição, e julgo minhas ações com base nele. Já a prudência de manter em segredo minhas intenções indica uma malícia, uma avaliação de quem ouve e, por consequência, de quem deve ouvir certas coisas. Novamente, aqui, há a vida social racionalizada. Por fim, o simples bom gosto de jogar sem mostrar suas cartas exibe ainda outro tipo de regra, implica em certo decoro; um "bom gosto" que se domina ou não. Em uma palavra, existe uma compreensão possível da estrutura da sociedade e das pessoas, e o homem de sucesso saberá o que acrescentar a isso, quando acrescentar e quando se abster.

Na medida em que teatralizo a mim mesmo, crio personagens de acordo com meus objetivos, eu ficcionalizo a própria vida. É isso, então, que há em Grácian, ao menos nesse aforismo? Que para obter o sucesso é necessário que se viva a vida como ficção?

quinta-feira, 8 de julho de 2010

#3 - Llevar sus cosas con suspensión

A culpa pelo atraso entre o último post e este é toda minha. Mas hey, nada como um atraso de duas semanas para estabelecer o tom para uma discussão da beleza de manter as pessoas em suspense.
Llevar sus cosas con suspención
La admiración de la novedad es estimación de los aciertos. El jugar a juego descubierto ni es de utilidad ni de gusto. El no declararse luego suspende, y más donde la sublimidad del empleo da objeto a la universal expectación; amaga misterio en todo, y con su misma arcanidad provoca la veneración. Aun en el darse a entender se ha de huir la llaneza, así como ni en el trato se ha de permitir el interior a todos. Es el recatado silencio sagrado de la cordura. La resolución declarada nunca fue estimada; antes se permite a la censura, y si saliere azar, será dos veces infeliz. Imítese, pues, el proceder divino para hacer estar a la mira y al desvelo.
O gênio de Gracián é a facilidade com a qual ele liga os diferentes significados de suspensión. É o ato de suspender a ação até que chegue o momento perfeito; é o suspense resultante, que faz todos perguntarem o que está acontecendo; é o delicioso frisson da "universal expectación", de "la admiriación da la novedad". O objetivo não é apenas manter as pessoas em suspense quanto aos seus objetivos, mas mantê-las em suspense quanto ao suspense; quanto mais raras forem as revelações, maior será o interesse por elas.

Mas é a última frase que atraiu minha atenção: manter as pessoas em suspense, deliberadamente ofuscando seus propósitos e despistando-as com respostas difíceis de compreender seria simplesmente a imitação do proceder divino. E Gracián talvez não está errado ao atribuir a Deus esta mistificação deliberada de seus propósitos. Gracián pode estar se referindo à platitude generalista de que os caminhos de Deus são misteriosos; mas o aforismo pode ter algo a ver com a resposta de Jesus aos seus discípulos, quando eles perguntaram por que ele ensinava através de parábolas:
"Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado; pois ao que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado. Por isso lhes falo por parábolas; porque eles, vendo, não vêem; e ouvindo, não ouvem nem entendem. E neles se cumpre a profecia de Isaías, que diz: Ouvindo, ouvireis, e de maneira alguma entendereis; e, vendo, vereis, e de maneira alguma percebereis. Porque o coração deste povo se endureceu, e com os ouvidos ouviram tardamente, e fecharam os olhos, para que não vejam com os olhos, nem ouçam com os ouvidos, nem entendam com o coração, nem se convertam, e eu os cure. Mas bem-aventurados os vossos olhos, porque vêem, e os vossos ouvidos, porque ouvem."
(Mt 13: 11-15)
Ocasionalmente pastores e escritores ensinam que as parábolas eram maravilhosos instrumentos didáticos de Jesus, que facilitavam a compreensão de seus ensinos ao colocar princípios espirituais em termos do cotidiano. Mas uma leitura superficial dos evangelhos já revela que muitas vezes os próprios discípulos não faziam idéia do significado das parábolas, e o próprio Jesus aqui revela que sua intenção real é exatamente o oposto daquela que é atribuída a ele: as parábolas existem não para esclarecer, mas para confundir. Aqueles que devem entender, entenderão; aqueles que não devem, não entenderão.

É claro que não podemos ir longe demais nesta leitura conjunta de Mateus e Gracián. Os motivos pelos quais Gracián recomenda a discreção — o medo de ser criticado caso seus planos não dêem certo, a prudência de manter em segredo suas intenções, o simples bom gosto de jogar sem mostras suas cartas — são, presumo, diferentes das intenções de Jesus, que insiste em manter sua mensagem do Reino de Deus um mistério para que se cumpram as profecias de Isaías, para que o juízo e a ira de Deus se manifestem. Mas é interessante notar que no momento em que Jesus abertamente revela suas intenções — quando ele se proclama a ressurreição e a vida, e levanta um homem do túmulo; quando ele entra em Jerusalém montado num burrinho, deliberadamente encenando a profecia de Zacarias, de que Jerusalém viria seu Rei chegando a ela "humilde e montado sobre um jumento" — no momento em que Jesus publicamente revela quem ele pensa que é, os líderes políticos e religiosos da nação prontamente o prendem, julgam e crucificam.

Então quem sabe o conselho de Gracián aqui é útil afinal.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Mecanismo do Sucesso

O Rafael usou a tradução da Sextante. A da Martin Claret é um pouco diferente:
Caráter e Inteligência
São os pólos que fazem luzir os predicados. Um sem a outra é apenas meia felicidade. Não basta ser inteligente; é preciso também ter o caráter apropriado. O tolo fracassa por desconsiderar sua condição, posição, origem, amizades.
Essas duas traduções tem uma coisa em comum, isto é, estão erradas, o que confundiu o Rafael a ponto dele não conseguir emitir opinião sobre nada e que levou o Acid a crer que Grácian defendia a honestidade. O que de fato foi escrito segue:
Genio y Ingenio. Los dos exes del lucimiento de prendas: el uno sin el otro, felicidad a medias. No basta lo entendido, deséase lo genial. Infelicidad de necio: errar la vocación en el estado, empleo, región, familiaridad. 
Acredito que a tradução correta, ou pelo menos mais adequada e compreensível para o nosso tempo, seja: personalidade e inteligência. A palavra "caráter" ali não indica, como vou mostrar, nenhuma imposição moral, nenhuma sugestão ética: ela trata de características próprias da pessoa, fala dos seus caracteres, não do Caráter, com letra maiúscula e defensor dos bons costumes. Não creio, no entanto, que Grácian veja nessa personalidade a essência imutável de alguém, como se discute aqui, mas que ele a enxerga de um ponto de vista estratégico. A personalidade e a inteligência de alguém são os eixos (tradução melhor para exes ou ejes; "pólo" traz de fato toda a confusão a que o Rafael aludiu) do processo de "iluminar as qualidades", isto é, iluminar, fazer aparecer, fazer com que se perceba os próprios adjetivos.

O que é esse iluminar as qualidades? Temos uma expressão cotidiana e contemporânea disso:
"Muitos possuem competências e, por vários fatores, elas não são facilmente reconhecíveis. Habilidades encobertas geram desvantagem, especialmente quando a competição é acirrada. Todos já se perguntaram: porque fulano, sendo menos preparado, menos hábil, menos esforçado e experiente, galgou sucesso pessoal ou profissional maior do que o nosso? Talvez uma das respostas seja a prática do marketing pessoal, uma estratégia para atrair e desenvolver relacionamentos interessantes do ponto de vista pessoal e profissional e dar visibilidade a características e competências relevantes na perspectiva da aceitação e do reconhecimento por parte de outros". [completo]
É um salto no tempo, mas creio que é precisamente isso que Grácian quer dizer; é engraçado, cremos que essa obrigação de autopromoção é uma coisa da nossa época capitalista. Será que é mesmo?

Se formos adiante no aforismo, teremos mais paralelos com o nosso tempo. "Infelicidade do nécio: errar/ se enganar sobre a vocação, as condições, as características próprias de certo emprego, região, etc". Talvez eu não faça uma tradução muito exata aqui, de qualquer modo acredito que aqui se diz o seguinte: cada situação, cada configuração de interesses variados implica em uma postura por parte da pessoa. Se em certa condição honestidade for um valor, então, para que suas qualidades sejam vistas, o indivíduo deve mostrar-se honesto. A personalidade deve ser algo maleável, adaptável, possuir resiliência, como se diz hoje. Esse é o segundo paralelo possível com a atualidade: o homem, talvez não integral, mas, certamente, resiliente.
"Pessoas resilientes são capazes de utilizar as pistas que lêem nas outras pessoas para reorientar o comportamento, promovendo a auto regulação; identificam precisamente as causas dos problemas e das adversidades presente no ambiente; compreendem os estados psicológicos dos outros (emoções e sentimentos). se conectam a outras pessoas com a finalidade de viabilizar a formação de fortes redes de apoio". [completo]
Há em Grácian pelo menos a sugestão de que inteligência é uma coisa múltipla. Se pensarmos no que o aforismo imediatamente anterior afirma, percebemos que essa é sua continuação necessária, sua ampliação: existe a pessoa inteligente, que percebe, aprende, intelige; e a pessoa social, inserida no meio e lidando com contextos e indivíduos. Podíamos alterar e atualizar o aforismo dessa forma: "inteligência emocional e inteligência interpessoal, de um lado, e as várias inteligências cognitivas de outros — dois grupos de eixos que fazem com que as qualidades sejam percebidas por todos. Um sem a outro, alegria pela metade". Grácian fala de eixos, de ferramentas, de mecanismos para o sucesso.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Inteligência + Caráter = Homem Integral

"Se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade" (Sócrates)

Concordo com o aforismo, apesar de achar um tanto exagerado o uso da palavra "pólo". Mas vejamos: enquanto a inteligência é um atributo com vários tipos e gradações (existe inteligência emocional, espiritual, quociente lógico, etc), o caráter é algo que se aplica a pessoa como um tudo. Ou a pessoa é íntegra ou não é. É como estar grávida (tem até falsa gravidez, mas não tem "estar meio grávida"). Então vemos que a inteligência e honestidade não caminham juntas (infelizmente).

"Aprendi no berço com minha mãe que não há homem meio honesto ou meio desonesto. Ou são inteiramente honestos ou não o são" (Jânio Quadros)

A inteligência sem ética nos leva quase sempre à uma barbárie "chique", como podemos ver no caso da ascenção da Alemanha na 2ª guerra mundial, com máquinas de matar cada vez mais sofisticadas (e ainda assim a serviço da barbárie). Stephen Hawking foi criticado por acreditar que civilizações extraterrestres poderiam vir apenas pra nos explorar, mas ele apenas se espelhou no que os nossos antepassados fizeram com os nativos das Américas e África (e como os chineses fazem hoje com seu próprio povo), e como os romanos fizeram antes disso. Seres com "inteligência" superior, aliada a ganância, dizimaram culturas com as mais diversas desculpas (até mesmo trazer a "paz e democracia", como os norte-americanos no Iraque).

O aforismo revela uma preocupação com o Homem Integral. Hoje em dia, por onde anda a ética, a honestidade e o caráter? Vale alguma coisa no mercado de trabalho? Existe formação de caráter nas escolas? Aqui no Brasil, até mesmo a filosofia foi abolida da grade curricular. O que esperar de nosso futuro?

"Quando a recompensa vai para os desonestos, é difícil ser honesto gratuitamente" (Salústio)

terça-feira, 15 de junho de 2010

#2 - Caráter e Inteligência

Caráter e Inteligência

São os dois pólos para exibir as qualidades de um homem. Um sem o outro é a boa sorte pela metade. Não basta ser inteligente, é preciso também ter a predisposição de carácter. A má sorte do tolo é desconsiderar sua condição, ocupação, vizinhança e amizades.

Bom, esse é o primeiro aforismo da nova edição (que vem com essa capa ao lado) e temos um conselho meio desconexo que revela o modo como Grácian escreveu a maioria dos aforismos.

Eu vejo vários problemas logo na primeira frase "Carácter e inteligência sáo os dois pólos para exibir as qualidades de um homem". Primeiro o uso da palavra pólo, que em geral não é percebido como coisas que se completam (apesar de se completarem), mas sim como coisas contrárias. Eu não vejo como colocar o caráter como pólo contrário da inteligência. E mesmo que fossem, por que diabos esses pólos servem para exibir as qualidades de um homem? Não seriam eles mesmos as próprias qualidades?

Ok, continuemos.

"Um sem o outro é a boa sorte pela metade." Agora ele já fala da questão da sorte, ele fala isso durante todo o livro sem realmente explicar o que afinal quer dizer com boa sorte. Ele brinca com a expressão as vezes colocando como uma sorte criada pelo ser e outras vezes como concedida por deus. Nesse aforismo especificamente essa frase não diz absolutamente nada.

"Não basta ser inteligente, é preciso também ter a predisposição de carácter." E também não há motivo para repetir a idéia num aforsimo tão pequeno, será que em vez disso você não poderia explicar o que você considera como carater e inteligência?

"A má sorte do tolo é desconsiderar sua condição, ocupação, vizinhança e amizades." O que a sorte tem a ver com isso? Não seria a falta de inteligência ou falta de carater que fazem desconsiderar essas questões?

Blá, esse aforismo não diz nada com nada.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Fazer um sábio

John, acredito que a sua definição do aforismo é exata: tudo no mundo está em seu ponto mais alto (nos termos de cada época), principalmente a possibilidade de se completar como pessoa. É uma percepção mais completa do que a minha. No entanto, creio que você se contradiz nessa frase: "acho difícil dizer que Gracián quer distinguir entre homens que são plenamente pessoas e homens que são incompletamente pessoas", porque depois você diz: "este é o mais propício e frutífero dos momentos para alcançar a completude como pessoa". Se há que se alcançar a completude como pessoa, então existe a condição de não ter alcançado essa completude, de ser menos completo, portanto, de ser menos pessoa. Podemos concordar em tudo dizendo: há uma perfeição do ser pessoa para cada época, e ela não é dada, mas conquistada pelo esforço.

Penso que sobre esse aforismo dissemos o bastante, eu só queria por em perspectiva — antes de partir para os próximos — algumas das ideias dele. Em primeiro lugar, essa ideia de Grácian de que há uma quantidade de aperfeiçoamento para fazer um sábio, que aparentemente cresce no decorrer das épocas (assim, na época dos gregos, havia determinada quantia necessária; na de Grácian, era preciso sete vezes essa quantia para ser um sábio de envergadura análoga). Ainda não sei qual será a proposta do nosso filósofo para chegar se aperfeiçoar, mas discuti noutro artigo a visão de Condillac — quero dizer, temos nele um entendimento de como se faz um sábio, que é algo que fica meio nublado nesse primeiro aforismo. No meu texto, cito Condillac quando ele afirma que todos possuem o método para conseguir conhecimento;o bom uso dele garante sabedoria a todos.

Como estou lendo Rosseau, também quero notar que, para esse outro filósofo francês, a capacidade de aperfeiçoamento é um traço distintivo fundamental entre homens e animais. Da forma como a nota de Ensaio sobre a Origem das Línguas, na edição de Os Pensadores (1999), me informa:
"Pelo Discurso sobre a Desigualdade sabemos, primeiro que não é tanto pelo entendimento que os homens se distinguem dos animais, senão pela sua qualidade específica de homem: a capacidade de se aperfeiçoar tanto individualmente quanto como espécie. (...)"
Além disso, só ficam pra depois duas coisas: a ideologia de controle que o Rafael intuiu nesse aforismo e o conceito protestante de esforço, que o John quis falar outra hora. O Rafael também tinha citado que poderia falar de uma visão durdeana de o que é se tornar pessoa, e acho interessante que ele diga; não para entendermos o A Arte da Prudência em si, mas pelo que pode dar o comparativo, o ter as duas compreensões (essa segunda, mais contemporânea) da mesma coisa.